Ler é preciso

Somente com a leitura é possível viajar a locais tão incríveis e maravilhosos com o mais poderoso veiculo de transporte: a imaginação

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A máscara

Um conto de Carnaval, de Sérgio Rodrigues*


Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior. Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. Por exemplo, quando você casar, duvido que agüente o que eu agüentei. Não agüenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido um dia sair por aí com um canivete no cinto e um pandeiro na mão, sossega leão e tal, eu acho que você pode até aceitar, mas conhecendo você como eu conheço, eu sei que mal a porta bateu você vai sair também, você pra lá, eu pra cá, até quarta-feira, lalaiá, lalaiá. Sossega leoa – vai ou não vai? Pois eu acho que está certíssimo, querida, nós é que éramos bobas no meu tempo, eu era. Engolia, agüentava, chorava no travesseiro, noite em cima de noite perdendo o viço. Uma mulher guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, cheiro de naftalina, ih, estou melosa, estou dramática, mas era assim. Não admira que os olhinhos fossem ficando merencórios, que o marido perdesse o interesse e procurasse cada vez mais passatempos, depois vinha cair na cama sem tirar nem o sapato. O seu avô, por exemplo: um homem bom, trabalhador, mas um patriarcão de antigamente, acho que um dos últimos. Pisada firme, vozeirão, chicote na cinta, chicote é maneira de dizer, que no Rio de 1950 ninguém usava chicote, mas você entende. Sua mãe não era nascida ainda, os outros quatro sim, aquela escadinha, e foi aí que ele me prometeu. O baile de máscaras do sábado de carnaval no casarão da Glorinha Pissaruçuba na Praia do Flamengo – não tinha programa mais cintilante, jóia social mais cobiçada naquele tempo. Era diferente demais, melhor, pior, eu não disse? Melhor, Vi, nesse caso era melhor porque nós íamos pela primeira vez no baile da Glorinha Pissaraçuba, ah, você tinha que ver a minha felicidade! A máscara veneziana eu comprei na Rua do Ouvidor para a ocasião, não foi barata, negra porque assim ficava mais discreto, mais digno, seu avô aconselhou. Aconselhou? Essa é boa, aconselhou nada, mandou, pois é. O vestido ia ser um verde brilhoso de festa que já começava a encardir no armário, mandei tirar, lavar, quarar, engomar, chegou o dia e eu fui fazer o cabelo, as crianças excitadas só de ver a minha felicidade, mamãe vai sambar, vai sambar, sambar, e quando chegou a hora, Vi – sambei, justamente. Seu avô ligou da rua dizendo que a gente não ia mais no baile de máscaras, imprevistos, ele falou, contratempos, uma palavra assim. Eu sabia o tipo de contratempo que ele gostava, aquele que o cabelo não nega mas em compensação a cor não pega, feito dizia o Lamartine. Seu avô não era fácil e a gente era boba demais, triste e amargurada, não tinha essa sabedoria das mulheres de hoje, não tinha o salve o prazer, salve o prazer. Me tranquei no quarto aquele sábado, os olhinhos merencórios dessa máscara negra aí, essa mesma, ficaram me olhando em cima da cama um tempão. Foi a Conceição que pôs as crianças para dormir, apagou a casa toda, você não teve tempo de conhecer a Conceição, até hoje eu sinto saudade. Ela cuidou de tudo enquanto eu ficava sentada na cama de vestido verde e laquê armado ouvindo as risadas, gritinhos, gente batendo na lata, os barulhos todos de carnaval que você conhece, isso não mudou tanto, ainda é assim. Eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha, e quando cheguei na esquina de máscara e vestido verde e vi um grupo de clóvis me olhando do outro lado da rua, me veio um pânico doido, quase dei meia volta. Nem sei como continuei andando, marcando o passo com o meu coração, acho que eu corria. Não lembro de ter entrado no Cadillac que o pierrô de porre parou do meu lado, me deu um branco mas eu sabia que, tendo entrado ou não, a verdade era que eu estava dentro dele agora, sentada no banco do carona com a cabeça girando e a mão do pierrô no meu joelho enquanto a estradinha cheia de curvas passava por nós, o mar rugindo lá embaixo, reconheci a Niemeyer. Quem é você, diga logo que eu quero saber, ele me disse que se chamava Jorge, depois Álvaro, mais tarde Toninho, e com o céu começando a clarear já tinha virado Camilo, Ciro, Ismael. Eu também não pronunciei o nosso nome, Vi, e a máscara negra nariguda eu só tirei enquanto a escuridão nos protegia, o pierrô não soube que eu me chamava Elvira. Mas nunca vou esquecer os olhos verdes dele, aqueles não tinham nada de merencórios, eram da cor do mar de São Conrado quando amanhece num domingo de carnaval – idênticos aos que me olham agora da sua cara espantada, Vi, isso também não mudou, e no fim daquele ano sua mãe nasceu.

* Sérgio Rodrigues é mineiro, radicado há 30 anos no Rio de Janeiro, jornalista das principais publicações nacionais, escritor com vários livros publicados, assina a coluna Todoprosa  do site www.ig.com.br, na página http://colunistas.ig.com.br/sergiorodrigues/


Este conto, escrito sob encomenda para uma edição temática do extinto “Paralelos”, foi publicado na página Todoprosa, do site www.ig.com.br, pela primeira vez em 18/2/2007.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Pinhal Antigo - O Leitor Pinhalense - nº 004

Mais uma edição e mais uma vez a presença do
livro “Nossa Terra Nossa Gente”, do historiador Ernesto
Rizzoni, pinhalense ilustre que muito contribuiu
para a construção da história de nossa Espírito
Santo do Pinhal. As notícias aqui reunidas
foram publicadas, originalmente, no jornal “Diário
de Campinas”, na segunda metade dos anos de
1880 e compiladas por Ernesto Rizzoni, no livro
“Nossa Terra Nossa Gente”, publicado no início
dos anos de 1960.
Na última edição de “O Leitor Pinhalense” foram
transcritas notícias publicadas no “Diário de
Campinas” entre 7 de março e 28 de abril de 1887.
Nesta edição, ao contrário do fi zemos até aqui, vamos
transcrever apenas o artigo publicado no dia
1° de junho de 1887, que, sob o título “À luz dos
lampiões”, “descreve a origem e fundação desta
cidade”.

 
Rua "Direita" (José Bonifácio): Flagrante da vida
pinhalense no início do século XX


1° de junho de 1887
À luz dos lampiões
Consoante prometera, o Maneco do
Correio reuniu domingo último o nosso
grupo, a fi m de descrever a origem e
fundação desta cidade:
- É interessante observar –começou ele
– como os acontecimentos se desenrolaram
no sentido da criação e progresso
das comunidades.
No princípio é o sertão, a mata indevassada
ou o deserto, o silêncio opressor
ou a solidão, até surgir o homem na
sua sede de conquista, no seu anseio de
domínio.
Vence ou morre na certeza que outro
virá para vingá-lo ou consolidar sua posição.
Aventureiros que perlustraram esta
região, arranchavam-se aqui e ali, e alguns,
diante da uberdade do solo, fi cavam.
Construíam sua cabana com mais
capricho, delimitavam uma área de terra
e cultivavam-na.
Tempos depois surgiam outros, apossavam-
se das terras devolutas ou mesmo
daquelas já ocupadas e, pela força ou
mediante pagamento, tornavam-se os
novos senhores.
Assim, em tempos recuados, formavam-
se os territórios, os arraiais, as povoações,
as vilas e as cidades.
Na época em que se desenrolam estes
acontecimentos – prossegue Maneco –
nosso território, composto de várias propriedades
agrícolas, constituía a parte
oriental do município de Mogi-Guaçu,
da comarca de São José de Mogi-Mirim.
Ainda não estava consolidado para alguns
o direito às propriedades das quais
eram ocupantes por aquisição dos primeiros
desbravadores, que as possuíam
por direito de conquista, o por não
serem julgados hábeis os documentos
obtidos por falta de formalidades essenciais.
Daí surgirem as divergências como as
que estavam em curso na época em que
ocorreram estes fatos.
Estávamos no ano de 1849. Vários
eram os possuidores do nosso território
nesse ano e poucas as propriedades
existentes. Sobressaiam, pela área, as
fazendas Sertãozinho e Pinhal, essa coberta
de densos pinheirais, que lhe emprestaram
o nome.
Romualdo de Souza Brito, m dos donos
da fazenda Pinhal, propriedade que
vinha sendo disputada por diversos colonizadores
da fazenda Sertãozinho, ignora-
se a que título, iniciando certa vez
a derrubada dos pinheiros existentes no
atual largo da Matriz, para o plantio de
milho, foi obrigado a interromper o serviço
em virtude dos gritos de desafi o e
dos tiros de espingarda e de trabuco que
lhe foram dirigidos.
Espírito Profundamente religioso e
equilibrado, Romualdo foi tomado de
súbita inspiração. Declarou que não
mais faria a roça, mas doaria das suas
partes uma área de quarenta alqueires
de terras ao Divino Espírito Santo, para
patrimônio, e a fi m de que, no mesmo
lugar onde ocorrera o incidente, fosse
erigida uma capela.
Em 27 de dezembro de 1849, pelo então
notário de São João da Boa Vista,
José Antônio de Abreu e Silva, foi lavrada
a escritura, na qual fi guravam como
doadores Romualdo de Souza Brito e sua
mulher D. Teresa Maria de Jesus e donatário
o Divino Espírito Santo, para o
estabelecimento do patrimônio.
O acontecimento não foi bem recebido
pelos turbadores, que procuraram,
antes da transcrição, anular a escritura,
bem como provocar distúrbios, iniciando
derrubada de mato e construindo
benfeitorias nas terras doadas, quando
dois desastres, atribuindo a causas sobrenaturais,
fi zeram cessar as hostilidades
que cada dia mais se agravavam.
Estava uma menina a peneirar milho,
quando ocorreu desprender-se o espeque
que segurava o madeiro do monjolo,
matando-a. Na mesma ocasião, um
carpinteiro caiu de um andaime, vindo
a falecer dos ferimentos recebidos.
Essas ocorrências – concluiu o Maneco
– conjugadas a outras anteriormente verifi
cadas, foram recebidas como castigo
do céu, infl uindo de maneira relevante
para serenar os ânimos, consolidar a doação
feita e decidir da sorte da povoação
nascente.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Aldo Cardarelli - O Leitor Pinhalense - nº 005

DA REDAÇÃO
O artista plástico Aldo Cardarelli e
uma de suas obras

Pintava em todos os lugares possíveis:
em caixas de papelão, de charuto e até
nas pedras das sarjetas. Quando não, se
metia de cavalete e guarda-sol no meio
de cachoeiras e passava horas a fazer o
que mais sabia: prender o mundo numa
tela. Natural de Campinas, Aldo Cardarelli
nasceu em 02 de fevereiro de 1915 e
morou a vida inteira no Cambuí. Como
a maior parte dos artistas, raramente
atentava para as coisas que aconteciam
no mundo real. Premiado inúmeras vezes
pela qualidade de sua obra, foi um
homem incomum. Além de nomear um
edifício no Cambuí, empresta o nome à
Galeria de Artes do Centro de Convivência
Cultural. Foi membro das academias
brasileira e paulista de belas artes, além
de ter lecionado desenho e pintura na
faculdade de arquitetura do Mackenzie,
em São Paulo, e na PUC Campinas. Morreu
em 15 de agosto de 1986. É nome de
rua no bairro Jardim Magnólia em sua
cidade natal.

A foto e as informações sobre o artista plástico Aldo
Cardarelli, autor da maioria das pinturas da Igreja Matriz
do Divino Espírito Santo, foram extraídos do site
http://pro-memoria-de-campinas-sp.blogspot.com

Cada louco com sua leitura - O Leitor Pinhalense - nº 002

 Lúcia Alonso*
 
"Tenho compulsão por ler e ler de tudo; desde bula de
remédio até jornal dos outros no ponto de ônibus"

Aprendi a não ter remorso por não terminar de ler um livro, da mesma forma que aprendi a admirar àqueles que me prendem até o final. Tenho compulsão por ler e ler de tudo; desde bula de remédio até jornal dos outros no ponto de ônibus. Ah! Aprendi a me controlar também, pois já estava ficando uma pessoa inconveniente.
Acredito que somos o que lemos, do mesmo modo que lemos um pouco do que somos. Eu tinha um temperamento eclético (existe isso?) e, por isso, escolhia o próximo livro de acordo com o pé com que eu acordava: pé direito é comédia, pé esquerdo é drama. Aprendi que é preciso se colocar de castigo e aprender a ler o avesso do seu humor porque faz muito bem.
Um exemplo disso foi o último livro que li que fala sobre inveja. Nunca imaginei que fosse gostar tanto de folhear sobre algo que tenho tamanho asco. Fiquei uma semana com fixação por inveja. Observava as pessoas na rua e analisava: “Aquele ali tem cara de invejoso” e dava conselhos tendenciosos: “Ihhh, isso é inveja!”. Mas algumas questões sobre esse assunto foram esclarecidas e ainda me acrescentaram bons parâmetros de vida. Porém, precisei me forçar a ler sobre o que não gostava. Obrigada, Zuenir Ventura.
No meu dia-a-dia, fujo de livrarias como o diabo foge da cruz. Não há coração que agüente minha compulsão, que não é por comprar livros, e sim, pela vontade de lê-los. Ao entrar numa livraria do centro da cidade, tenho taquicardia e frenesi por todas as sessões. Não sei por quê aprender sobre macroeconomia, por exemplo, poderia me acrescentar algo se nem me lembro mais da tabuada! Ou por quê diabos eu preciso ler Harry Potter em inglês?! O fato é que tenho vontade, vontade e mais vontade daquelas de grávida, super criativa, que vai de guia de ruas até os raríssimos clássicos.
No meu dia-a-dia, fujo de livrarias como o diabo foge da cruz. Não há coração que agüente minha compulsão, que não é por comprar livros, e sim, pela vontade de lê-los. Ao entrar numa livraria do centro da cidade, tenho taquicardia e frenesi por todas as sessões. Não sei por quê aprender sobre macroeconomia, por exemplo, poderia me acrescentar algo se nem me lembro mais da tabuada! Ou por quê diabos eu preciso ler Harry Potter em inglês?! O fato é que tenho vontade, vontade e mais vontade daquelas de grávida, super criativa, que vai de guia de ruas até os raríssimos clássicos.
Hoje sou mais criteriosa com o que leio. Estava me tornando uma pessoa muito questionadora por ler autores que queriam ajudar ensinando a se auto-ajudar, mas que, no fundo, só me confundiam me fazendo refletir muito e obter poucas respostas realmente concretas. Não quero mais saber quem mexeu no meu queijo. Quero saber a origem do queijo! Não quero mais entender porque o pai é rico ou o pai é pobre. Eu quero saber como o filho enriqueceu!
Brincadeiras à parte, me preocupa o que está sendo lido e as conseqüências desse hábito na vida das pessoas. Mas, ao mesmo tempo, fico feliz que leiam e cultivem suas manias de leitura. O quê? Quais são as minhas manias? Uma apenas: os meus livros... eu não empresto! Mas estou mais organizada em relação a tudo isso. Passei também a comprar meu próprio jornal e o mais importante foi que consegui otimizar meus gastos com livros. Mas esses, não me peçam. Eu não empresto! Cada Louco com sua mania, não é?

* Lucia Alonso - Em 2009 tinha 27 anos e cursava o último período de jornalismo. Seu trabalho na época era na área de Comunicação Empresarial – Analista de Marketing,. Tem trabalhos publicados no jornal Folha da Cidade, no interior do Estado do Rio de Janeiro e mantém o blog “Olhar cotidiano” (http://olharcotidiano.blogspot.com), que recomendamos para os leitores de “O Leitor Pinhalense”.

 No texto de José Rosa (Eu leio muito. E daí? - O Leitor Pinhalense - nº 002) encontrei, entre parênteses, a frase “Quem procura acha” e foi procurando que encontrei este saboroso texto de Lucia Alonso, “Cada louco com sua leitura”. De imediato enviei uma mensagem à Lucia solicitando autorização para publicá-lo aqui em “O Leitor Pinhalense”. Não demorou e essa jovem jornalista de Niterói enviou sua resposta, felizmente positiva em todas as palavras: “Autorizo a publicação”. E completou: “Que bom que ainda existam veículos interessados em estimular a leitura já que me parece que a maioria da imprensa prefere que seus leitores continuem na ‘santa ignorância’”.
Luiz Gonzaga Tessarine

A arte de ler... e reler - O Leitor Pinhalense - nº 003

GABRIEL PERISSÉ*
Quem relê o verbo reler de trás para
frente, relê reler novamente

Reler é verbo insistente, que não
tem medo de bicho papão nem de repetição.
O próprio verbo reler é um duplo
ler, pois se eu leio reler de trás para
a frente ele fi ca exatamente igual: é
reler pra cá... reler pra lá...
A releitura é ler de novo o que já é
velho, encontrando novidades que
só podem estar ocultas no que todo
mundo viu, mas não percebeu.
Faltou releitura.
Releitura é deixar de ser “analfabeto
para as entrelinhas” (Guimarães
Rosa) e captar o que estava lá, mas
a pura leitura não soube fi sgar, peixe
fugidio, lebre arisca, raio de sol.
Releitura cura superfi cialidade.
Releitura faz bem aos olhos.
Releitura de manhã ajuda a pensar.
Releitura à noite protege contra pesadelos.
A releitura é como a água, tanto bate
até que fura... nosso medo de entender.
Leia de novo: re-lei-tu-ra. De novo:
re-lei-tu-ra.
De que vale ao homem ter muitos
livros se não tiver tempo para reler?
Reler devagar, reler palavra por palavra,
letra por letra, degustando cada
milímetro de casa signifi cado?
Reler não é chupar uma laranja de
novo. O milagre da releitura é que
sempre há mais suco na segunda vez.
E mais suco ainda na terceira.
Reler é a arte de voltar ao mesmo lugar
como se fosse pela primeira vez.
Reler é remar no mesmo mar como
se fosse pela primeira vez.
Reler o anel que tu me deste era vidro
e se quebrou, o amor que tu me
tinhas era pouco e se acabou. Será?
Mas se era pouco não era amor.
Reler é reatar a infância.
Reler é entrar de novo na ciranda,
ciranda cirandinha, vamos todos cirandar,
vamos dar a meia volta, volta
e meia vamos dar, vamos nesta rua,
nesta rua, e nesta rua tem um bosque
que se chama, que se chama solidão,
dentro dele mora um anjo, que roubou,
que roubou meu coração.
Reler é reatar passado-presente-futuro.
Samba Lelê ta doente, ta com a cabeça
quebrada. Samba Lelê precisava...
é de umas boas lambadas. Fui no
Itororó beber água, não achei, mas
achei bela morena que no Itororó deixei,
aproveita, minha gente, que uma
noite não é nada... e se não dormir
agora... dormirá de madrugada.
Ah, como é bom reler e reouvir essas
velhas canções, que nos fazem fi -
car um pouco mais novos.

* Gabriel Perissé é professor, com doutorado em
Filosofi a da Educação pela USP, autor dos livros “Ler,
pensar e escrever” (Ed. Arte e Ciência), “O Leitor
Criativo (Omega Editora), “O professor do futuro” (Thex
Editora) e “Palavras e origens” (Editora Mandruvá)
e mantém o site www.perisse.com.br, que “O Leitor
Pinhalense” recomenda.

“O Leitor Pinhalense” agradece o apoio e as palavras
do escritor Gabriel Perissé quando de sua autorização
para que pudéssemos publicar o texto “A
arte de ler... e reler”: “...obrigado pela mensagem e
parabéns pela iniciativa a favor da leitura! Será uma
honra ver meu artigo publicado por vocês”.

Pablo Neruda - O Leitor Pinhalense - nº 001

Pablo Neruda*
O poeta e escritor chileno Pablo Neruda

“Morre lentamente quem não viaja,
quem não lê, quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói
o seu amor-próprio, quem não se deixa
ajudar. Morre lentamente quem se
transforma em escravo do hábito, repetindo
todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca, não
se arrisca a vestir uma nova cor ou
não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão
o seu guru. Morre lentamente
quem evita uma paixão, quem prefere
o negro sobre o branco e os pontos
sobre os “is” em detrimento de um redemoinho
de emoções justamente as
que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos
dos bocejos, corações aos tropeços
e sentimentos. Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está
infeliz, quem não arrisca o certo pelo
incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite pelo menos
uma vez na vida fugir dos conselhos
sensatos. Morre lentamente, quem
passa os dias queixando-se da sua má
sorte ou da chuva incessante. Morre
lentamente, quem abandona um projeto
antes de iniciá-lo, não pergunta
sobre um assunto que desconhece ou
não responde quando lhe indagam sobre
algo que sabe. Evitemos a morte
em doses suaves, recordando sempre
que estar vivo exige um esforço muito
maior que o simples fato de respirar.
Somente a perseverança fará com que
conquistemos um estágio esplêndido
de felicidade.”

* Pablo Neruda (1904 - 1973) - Seu verdadeiro nome é Neftalí Ricardo Reyes Basoalto e o nome que adotou foi uma homenagem ao poeta francês Paul Verlaine e ao tcheco Jan Neruda. Poeta, escritor e diplomata chileno, é considerado um dos maiores poetas da língua espanhola no século XX. Como ativista político foi cônsul em diversos paises, inclusive no México, Argentina e na Espanha. Agraciado com Prêmio Stalin da Paz (1953) e Nobel de Literatura (1971).