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sábado, 23 de janeiro de 2010

Leia esta canção - Marcha para os Canteiros - O Leitor Pinhalense - nº 005


Versos da poetiza Cecília Meireles inspiram o desavisado Fagner a compor uma das mais belas músicas da MPB

Cecília Meireles: autoria resgatada
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Por: J. Oswaldo Cardoso

Muitas pessoas conhecem a música e a letra da canção Canteiros, de Raimundo Fagner. Mas boa parte dos amantes da música desconhecem a história que se formou a partir da simples inspiração nos versos do poema Marcha, de Cecília Meireles. Uma verdadeira novela envolvendo o cantor e compositor e as filhas de Cecília Meireles, herdeiras de seus direitos autorais, se arrastou por alguns anos.
Pouco depois do início da ação judicial em 1979, Fagner declarou ter se inspirado nos versos de Cecília Meireles para compor Canteiros. O processo se arrastou por duas décadas, terminando em 1999, quando a Sony Music fez um acordo com as herdeiras da poesia de Cecília Meireles para a regravação de Canteiros. A nova versão da música aconteceu no início de 2000 – já com os devidos créditos à Cecília Meireles – e foi incluída no disco Raimundo Fagner – Ao vivo.
A seguir, o poema Marcha, de Cecília Meireles, fonte inspiradora de Fagner. Em seguida, a letra de Canteiros, já “traduzida” e adaptada para o formato musical.

Marcha

Cecília Meireles

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a idéia do movimento.

Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.

Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.

Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.

Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos ristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento…
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

Fagner: processado pelas irmãs Meireles durante 20 anos

Canteiros
Raimundo Fagner (sobre poema de Cecília Meireles)


Quando penso em você
Fecho
os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa
Menos a felicidade

Correm os meus dedos longos
Em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego
Já me dá contentamento

Pode ser até manhã
Sendo claro, feito o dia
Mas nada do que me dizem me faz sentir alegria

Eu só queria ter do mato
Um gosto de framboesa
Pra correr entre os canteiros
E esconder minha tristeza

E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza ...
E deixemos de coisa, cuidemos da vida
Senão chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
São as águas de março fechando o verão
É promessa de vida em nosso coração.



É em Desacordo que a gente se entende - O Leitor Pinhalense - nº 005


Autor do livro Desacordo Ortográfico escreve um texto exclusivo para O Leitor Pinhalense
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Por: Reginaldo Pujol Filho

 Capa do livro organizado por Pujol Filho: reunião de
textos de escritores em "desacordo"

Desacordo ortográfico pode ser definido de variadas formas. Pode-se, sinteticamente, dizer que este livro é um elogio à diferença. Ou uma provocação ao Acordo Ortográfico. Ou a certeza de que a boa literatura não entra em acordo com as regras. Ou ainda que o Desacordo ortográfico é Altair Martins, Cardoso, Gonçalo M. Tavares, João Pedro Mésseder, Luandino Vieira, Luis Fernando Verissimo, Luís Filipe Cristóvão, Manoel de Barros, Marcelino Freire, Maria Valéria Rezende, Nelson Saúte, Olinda Beja, Ondjaki, Patrícia Portela, Patrícia Reis, Pepetela, Reginaldo Pujol Filho, Rita Taborda Duarte, Rogério Manjate e Xico Sá.     
Desacordo orográfico é a antologia organizada por Reginaldo Pujol Filho e editada pela Não Editora que busca, através da seleção nada convencional de autores e de textos, estimular a reflexão sobre a incompatibilidade de normatizações e acordos com a literatura. Regras vão muito bem para documentos, mas a literatura vive em outro campo, paralelo ao texto convencional. Um campo onde as experimentações temáticas e formais, mais do que bem-vindas, são necessárias pra inspirar livros, escritores e leitores.
Os vinte autores que compõem o volume, com poesias, contos e textos inclassificáveis, formam um painel de possibilidades para a língua portuguesa e também de perspectivas. São escritores de cinco países, Angola, Brasil, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, que o mostram o muito que dá para se fazer com o idioma e acabam por fazer acreditar que muito mais é permitido.
E não pense que as diferenças se dão apenas através dos regionalismos típicos de cada país ou estado brasileiro representado no livro. Pelo contrário, a seleção procurou ir muito além de folclorismos e peculiaridades regionalistas. Pode-se dizer que no Desacordo ortográfico não existe o português típico de um país, região ou cidade. Mas que está lá presente o português típico das ignorãnças de Manoel de Barros, o português nativo das invenções de Luandino Vieira, o português nascido na muscialidade de Rogério Manjate, o português específico da feminilidade de Patrícia Reis ou o português originário do bom humor e da criatividade de Luis Fernando Veríssimo.
A expectativa é que os leitores surpreendam-se com a diferença – e também qualidade – a cada novo texto. Estão lá histórias e poesias para todos os gostos. Exatamente como tem sido o lançamento do Desacordo ortográfico. Antes mesmo de estar impresso, ele já acontecia (e continua acontecendo) no blogue www.desacordo-ortografico.blogspot.com. Um espaço onde é possível encontrar uma série de vídeos em que os autores da antologia lêem textos de outros autores do Desacordo. Depois disso, na sexta-feira, 13 de novembro, ocorreu o lançamento oficial em Porto Alegre. Em uma festa onde o organizador Reginaldo Pujol Filho e os autores Altair Martins, Cardoso e Ondjaki se divertiram com os leitores, além de autografar o livro. E, no sábado 21, o Desacordo já chegava a São Paulo, como parte da programação da Balada Literária. Foi a vez de Marcelino Freire e Xico se juntarem a Reginaldo Pujol Filho para fazerem muitos brindes à diferença no Bar Mercearia de São Pedro.
E o Desacordo não pára por aí. Porque ele não se resume ao livro. Já acontecia antes dele na obra desses vinte autores e de tantos outros. E continuará a acontecer sempre que um autor desafiar a língua, discordar do sentido de uma palavra ou tentar inventar outros jeitos de dizer e contar uma história.
O livro pode ser encontrado em diversas livrarias de todo o Brasil, como Cultura, Livraria da Vila, Saraiva, entre outras.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Gazeta Esportiva

Um pouco de história de um pinhalense que colecionou um dos mais importantes jornais esportivos que já circulou no Brasil

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Por: Luiz Gonzaga Tessarine

Esta nossa vida é mesmo cheia de surpresas, a maioria, felizmente, agradável.
Comer um salgado, tomar uma Coca-cola e, depois, apreciar um doce na Confeitaria Doçura é um prazer que muitos pinhalenses já experimentaram, mas, além dessas delícias todas, trocar umas palavras com o Edésio Scalese e descobrir que ele tem seis volumes de exemplares antigos, encadernados, da Gazeta Esportiva é realmente uma surpresa das mais agradáveis.
O que dizer, então, de poder levar para casa uma dessas raridades e viajar com todas as principais notícias esportivas que ocuparam as páginas de A Gazeta Esportiva no segundo semestre do ano de 1945? Fonte de inesgotáveis prazeres, essas páginas de A Gazeta Esportiva lava-nos a imaginar todas as histórias que se desenrolaram a partir daqueles fatos ali narrados. Só para lembrar, o Brasil nem era Campeão do Mundo.
Mas as surpresas não param por aí! Conversa vai, conversa vem e fico sabendo que o Edesio resolveu encadernar os exemplares deixados pelo sogro, José Niero, lá no ano de 1969 e, desde então, vem cuidando para que a vontade de Seu Zé Niero seja preservada.
Que história! Que prazer poder reler as mesmas páginas que um dia foram tocadas e lidas pelo Seu Zé Niero.
Em 1969, quando Pinhal perdeu a boa alma do Seu Zé Niero, eu contava quinze anos de idade, mas é bem provável que ainda guardasse, em algum canto de minha casa, alguns toquinhos, algumas rodinhas e alguns brinquedos vindos da fábrica do Seu Zé e que, pela importância que tiveram na infância que acabara de deixar, não podia me desfazer.
Hoje, passados quarenta anos, guardo comigo a imagem de um “home bão” que meu pai se orgulhava em ter como amigo. Nós, meus irmãos e eu, sabíamos avaliar e apreciar o tamanho desse orgulho pois, até hoje, repetir o nome do Sr. José Niero é poder reviver nossa feliz infância.
Fico sabendo, em meio às emocionadas palavras do Zé Niero Filho, que o pai era um apaixonado por cinema, gostava de pintar e desenhava os brinquedos que fabricava. Não falamos sobre leitura, mas das leituras de A Gazeta Esportiva quero crer que o Seu Zé buscava as notícias sobre as principais equipes de futebol de Pinhal, o Esporte Clube Comercial e o Ginásio Pinhalense de Esportes Atléticos.
Nos exemplares de 1945 – edições de 1141 a 1189, encontro várias notas sobre as vitórias do Esporte clube Comercial - curiosamente, nenhuma informação sobre o GPEA, todas previamente apontadas pelo...., o Cruzinha, que também teve o privilégio de passear por essas páginas.
As notas, publicadas sempre na página “A Gazeta Esportiva no Interior”, eram passadas à redação por telefone, como, por exemplo, a notícia sobre a vitória sobre o Mogi-Mirim, publicada no dia 16 e julho: Magnífica vitória do E.C. Comercial de Pinhal. Pinhal, 15 (pelo telefone) – O Comercial F.C, colheu, na tarde de hoje, bonita vitória ao vencer o Mogi-Mirim E.C., pela contagem de 6 a 3, tentos de Sebastião (2), Pipoca (2) e Orlando Silva (2). Eis como atuou o quadro comercialino: Angelim, Leando e Toco, Ciro, Sebastião e Rocha, Dino, Berrinoto, Pipoca, Maltempi e Orlando Silva.
Berrinoto? As ligações telefônicas naquela época eram difíceis e, certamente, a redação ouviu mal o nome do Valinoto, excepcional jogador de futebol que tive o prazer de ver jogar no tempo em que o Caco Velho só tinha o quadro de veteranos.
Mas O Leitor Pinhalense, para não criar nenhum caso com as grandes torcidas paulistas, deixa de lado as questões particulares e transcreve um texto publicado no dia....., que, certamente, além de interessante, é uma fiel tradução do amor que o brasileiro tem pelo futebol.
Ao Edesio Scalese e ao Zé Niero Filho os nossos agradecimentos e ao Leitor Pinhalense, José Niero, nossas homenagens.


José Niero: colecionador de A Gazeta Esportiva

Linha do tempo
16 de maio de 1906 – Adolfo Araújo funda o jornal vespertino A Gazeta, que traz seções fixas de economia, política, saúde, artes, literatura e um suplemento feminino.
14 de julho de 1918 – Cásper Líbero, que já colaborava com o jornal, compra A Gazeta. Inicia-se a fase áurea do periódico. Com trabalho e dedicação, Cásper promove reformulações no jornal e faz A Gazeta prosperar.
1925 – Surge, pela primeira vez no Brasil, uma corrida na qual todos (negros, brancos, esportistas ou não) podem participar. A São Silvestre, criada por Cásper Libero, é baseada na March Flambeaux, que ocorre anualmente na França.
1926 – O dono de A Gazeta promove a Travessia a Nado de São Paulo, realizada no rio Tietê.24 de dezembro de 1928 - Para cobrir os eventos esportivos, surge o suplemento A Gazeta – Edição Esportiva, que publica notícias e comentários sobre o esporte no Brasil e no mundo. O suplemento é semanal, em tamanho tablóide.
1938 – O nome A Gazeta Esportiva aparece pela primeira vez ao lado do logotipo do jornal A Gazeta. O suplemento esportivo passa a ser publicado em três cores.
1941 – A Gazeta Esportiva passa a ser veiculada duas vezes por semana. Aos sábados, noticia as principais realizações no campo esportivo. Às segundas-feiras, apresenta um quadro completo sobre os resultados dos campeonatos esportivos e comentários referentes a eles.
10 de outubro de 1947 – A Gazeta Esportiva, que anteriormente era um suplemento de A Gazeta, torna-se um jornal independente. Sua publicação passa a ser diária, sob a direção de Carlos Joel Nelli. Nasceu, desta forma, o primeiro jornal a se dedicar inteiramente à divulgação de informações sobre todas as modalidades esportivas, firmando-se como o “mais completo jornal de esportes do país”.
1º de setembro de 1953 – Cria-se a revista A Gazeta Esportiva Ilustrada, vendida separadamente dos demais veículos.
23 de junho de 1970 – Seguinte à conquista da Copa Jules Rimet, após a vitória brasileira de 4 a 1 sobre a Itália, no México, a edição de A Gazeta Esportiva bate o seu recorde de tiragem: 534.530 exemplares.
25 de agosto de 1979 – É publicada a última edição do jornal A Gazeta. No dia seguinte, A Gazeta é publicada sob forma de suplemento em A Gazeta Esportiva.
19 de novembro de 2001 – O jornal A Gazeta Esportiva circula nas bancas, pela última vez, aos 54 anos e na edição número 27.162.
20 de novembro de 2001 – Todas as informações e serviços na área esportiva são transferidos para o site www.gazetaesportiva.net. A partir deste dia, todo noticiário sobre os mais diversos esportes no Brasil e no mundo são veiculadas pelo site.

...e a cobra fumou


Produzido nos campos de batalha, jornal foi fonte de informação para A Gazeta Esportiva

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A Gazeta Esportiva 




Higino Correia é um desses patrícios que, de maneira brilhante, lutaram contra o totalitarismo, integrando a Força Expedicionária Brasileira. Na vida civil, antes de seguir para o Velho Mundo, Higino sempre se mostrou um apaixonado do futebol, esporte que admirava e praticava. Pertenceu ao quadro principal Neofarma F. C., que disputava o certame da L.E.C.I.. Além disso, sempre se mostrou um nosso grande e desinteressado amigo, e sempre que podia dava um pulo até a redação, afim de nos trazer o seu abraço cordial.
Convocado que foi, seguiu para a Itália e passado algum tempo, recebemos sua primeira carta, a qual não deixamos de responder. Em seguida, ao invés de uma nova missiva, um interessante número de um jornalzinho cujo título era “... e a cobra fumou!”, editado em plena linha de frente, e do qual Higino figurava como redator-chefe. Encerrava esse jornal estupendo material, não só de noticiário comum, como também esportivo. Daí termos aproveitado não poucas notícias transcritas em nossas edições diárias e esportivas. E depois, outros números vieram, e nós nunca deixamos de nossas “vantagens”, publicando sempre as notícias insertas nos mesmos.
Mas notamos que a medida que o tempo passava, mais progressos acusava o vespertino – mirim dos expedicionários brasileiros. E ficamos matutando: “Como é que, numa linha de frente, seria possível a confecção de um jornal tão bem feito e tão caprichado?”
A guerra teve fim e os nossos soldados retornaram à pátria e integrando o primeiro escalão da FEB veio também Higino Correa. E assim que chegou a São Paulo, o então cabo Higino Correa não deixou de vir nos trazer seu abraço amigo. E assim palestramos longamente.
Inicialmente, abordamos coisas registradas no “Front” e tivemos então ensejo de verificar quão árduo e brilhante foi o desempenho dos “pracinhas” nos campos de batalha europeus. Mas, não ficamos só nisso. Como era natural, procuramos saber algo a respeito de esportes, e lançamos a primeira pergunta referente ao assunto.
-vocês praticavam esportes lá na linha de frente?
-como não! Sempre que podíamos e nos momentos de tréguas.
-que espécie de esporte?
-futebol e voleibol, de preferência.
-e o “material”?
-bem... “Material” mesmo, nós não tínhamos, a não ser bolas. O resto, a gente arrumava, com as botinas de campanha, etc...
E depois de uma ligeira trégua, como que querendo a recordar de alguma coisa, Higino saiu-se com essa:
-aliás, com relação ao futebol, tenho um caso sobremaneira divertido. Estávamos em Roghera. O dia parecia calmo, pois não tínhamos inimigos à vista e nem havíamos sofrido qualquer ameaça. Inventamos então de disputar uma partida em plena linha de fogo, num terreno mais ou menos apropriado para isso; e o “pega” teve início após a formação das duas equipes. Sucede, porém, que uma patrulha alemã abriu fogo contra a turma e interrompeu o jogo...
-e vocês concordaram com isso?
-que esperança! A turma contra-atacou, espantou a patrulha para longe e voltou para o segundo tempo...
-e como é que terminou esse jogo?
-olha, para dizer a verdade, nem me lembro, pois a confusão era medonha. Não tinha juiz e cada time reunia mais ou menos uns 20 jogadores...
-e quanto ao voleibol?
-jogávamos também. Em todas as cidades que tomávamos posição, armávamos uma rede provisória em local mais ou menos adequado, e depois quando podíamos iniciávamos os “canindés”.
Mas não havíamos ainda atingido o nosso objetivo. A nossa maior curiosidade residia justamente na forma pela qual era feita o jornalzinho que o Higino sempre nos remetia. E fomos então ao assunto:
-como é que conseguiram criar lá no “front” o jornal “...e a cobra fumou!”?
-a idéia vinha sendo alimentada desde a nossa partida do Brasil, idéia essa substanciada por um jornal americano que se publicava na escola de minas, lá na Itália, e da qual eu fui aluno, pois me especializei na caça de minas. Inicialmente, o jornal teve vida da seguinte forma: as notícias eram datilografadas em cinco vias e as mesmas eram distribuídas uma para cada campanha.
-e como é que faziam para ler o jornal?
-colocava-se aquela via num pedaço de madeira fincado no chão e o pessoal fazia fila para a leitura.
-e daí?
-quando começamos a nos aproximar de cidades grandes, as notícias eram escritas na linha de frente e de lá seguiam para o posto de comando, onde o sargento Catani as dactilografavas e as enviava para uma cidade da retaguarda, onde então o jornal era impresso numa tipografia qualquer do local.
-e as despesas?
-quasi sempre eram custeadas pelos próprios soldados, mediante contribuições espontâneas.
-e quais foram os outros fundadores e redatores do jornal?
-major João Carlos Groos, ten. José Alfio Piason, sargento José Luiz Catani e soldados Daucio Pires Barbosa, Alvim de Oliveira Alves e Alceu Nogueira Scares.
-além de cabo e redator do jornalzinho, desempenhava outra linha de frente?
-sim. Era raio-telegrafista, intérprete de inglês e caça-minas especializado.
E por mais tempo permanecemos em palestra com Higino Correa; que agora já licenciado voltará a sua vida costumeira entre nós, retornando naturalmente à prática do futebol e à realização de suas sempre estimadas visitas à turma cá da casa que tem nele um bom e atencioso amigo.
* Transcrito da edição número 1156 de A Gazeta Esportiva, publicada no dia 25 de agosto de 1945.





Cronistas do Estadão

Livro reúne cronistas e crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo ao longo de sua história.

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Da Redação

O Jornalista e escritor pinhalense Moacir Amâncio organizou e editor, em 1991, o livro "Cronistas do Estadão", uma coletânea que reúne texto dos principais cronistas que passaram pelo jornal, entre eles: Fernando Sabino, Euclides da Cunha, Ligia Fagundes Teles, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Paulo Francis, Rubem Braga e Raquel de Queiroz.
O Leitor Pinhalense selecionou dois dos textos publicados no livro: "Fazer versos", de Guilherme de Almeida e "O poeta no bar", de Luiz Martins.

Fazer versos
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Por: Guilherme de Almeida

- Sim, custou muito.
Foi preciso, primeiro, que eu fosse bem criancinha ainda e chorasse muito sem saber por quê... E mais tarde...
... que eu descobrisse o arco-iris, achasse lindo, mas lhe desse as costas para compreender o sol. E depois...
... que eu aprendesse a ler e a escrever, achando interessante o desenho das letras, suas curvas e suas retas. E então...
...que eu começasse a dizer as palavras e a gostar delas, independentemente do seu sentido, apenas pela sua musicalidade. E por isso...
... que eu procurasse saber como foi e para que foi que elas nasceram, e por que, e onde, e quando. E, pois...
... que eu percebessem serem elas multiformes, variando, segundo o tempo e o espaço e a boca das raças diferentes que a dizem. E, no entanto...
... que eu entendesse ser a sua forma, na grafia e no som, diferentes, sendo todavia um mesmo o seu sentido, isto é, o seu espírito. E este era preciso...
... que eu achasse parecido com aquela, como a alma se parece com o corpo. E, baseado nessa harmonia...
... que eu elegesse a expressão exata, capaz de exprimir qualquer coisa...
... que eu criasse e guardasse em mim, fechada, secreta, proibida, porque me pareceu imoral. Mas para que não morresse ela comigo...
... que eu tivesse a coragem de tirá-la do meu mundo e revelá-la e entregá-la ao mundo de todo o mundo. E agora...
... que, retrocedendo, voltasse eu à criançinha que fui, chorando muito, sem saber por quê.

Isso, aí em cima, para responder ã pessoa amiga que me perguntou, outro dia, se me custou muito fazer o meu primeiro verso.
* Crônica publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 09/09/1961


O poeta no bar
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Por: Luiz Martins

Conversa que ouvi num bar, em horas crepusculares, de um poeta com três ou quatro aperitivos no bucho com um amigo, pelo visto, não menos provido de combustível. Dizia o poeta:
- PIS é como te digo, caboclo, chegou a hora da onça beber água, ou seja, o instante mágico do êxtase poético. Pede mais gelo. E vê se me arranjas um pára-brisa de silêncio, para proteger dos tumultos do dia esta ilha de sonho. A vida parou.
- Deixa disso, velhinho.
- Quero beber solidão...
- Não mistura. Bebe outro uísque.
- Quero beber solidão, bruto ignaro, que estou sentindo o poema percorrer meu corpo, com seus pés sutis.
- É. Já reparei que neste bar tem pulga. Vou falar com o Ronoel.
- É o poema, cretino. Para seu governo, acho-me em transe poético. Nã0 tem pulga nenhuma, estou suando lirismo e sempre que chego a este ponto sinto cócegas versejadoras insinuando-se pelo meu ser, entre a camisa e a pele. Acho que isto se chamava antigamente inspiração. No meu caso é transpiração.
- O.K., meu faixa.
- O fato é que esse crepúsculo me deixa nervoso e comovido. E eu perambulo, sonâmbulo, pelas margens de silêncio do lago do devaneio. Paisagens de baira-sonho...
- Está legal pra burro!
- Anoiteço com meiguice. A estrela que fica além, além da Serra da Estrela, conduz meus passos incertos, pisando a esmo, assim mesmo, os estilhaços do dia. Beijei a boca da noite.
- Se tua mulher sabe disso!
- Que sabe a mulher do homem – e o homem que sabe dela? Dá-me tua mão suavíssima, oh! doce amiga, imaculada e bela!
- Sai pralá!... Que conversa é essa? Está me estranhando?
- Não é você, cavalgadura! Falo da noite.
- Ahn! Bom! Então, antes que eu me esqueça: vamos pro penúltimo?
- Os penúltimos serão os primeiros; e muitos serão os chamados, porém, poucos os escolhidos.
- Esta eu matei. Você está falando da instalação de telefones. É ou não é?

Chegou uma pessoa conhecida e pôs-se a conversar comigo; não pude, assim, ouvir o resto da conversa do poeta que queria beber solidão, mas, enquanto a solidão não vinha, ia mesmo bebendo uísque.
* Crônica publicada no jornal O Estado de S.Paulo, em 22/12/1961

domingo, 17 de janeiro de 2010

Tantas questões

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Por: Luís Antônio de Filippi Chaim

Toda manhã, chuva ou sol, muito antes dos olhos abrir, um arrepio de ponta a ponta, perpassa seu corpo todo. Com um choque diferente, quase elétrico, seu cérebro se liga e as questões voltam borbulhando incessantes. Eram os deuses astronautas? Porque há pedras no caminho? No meio do caminho eram pedras? Porque o céu é azul? Essa ele sabia, tinha lido em algum lugar, mas, se esquecera, como sempre. Porque as manhãs eram curtas e as tardes tão longas?
Então, os seus olhos se abrem; o despertar, um ritual; o espreguiçar é moroso e levantar é um tédio. Onde estão os chinelos? Que pijama é esse? Deus meu, que fiz eu? Em passos lentos caminha até o banheiro. Necessidades à parte, tudo o mais é necessário; o banho, a higiene dental, a mental, o café e o pão...
Porque as rosas se chamam rosas e não valérias?
Entre mordidas bem dadas, as questões salpicavam. E se o café não fosse preto, que cor escolheria? Verde? Verde mato? Verde escuro? Amarelo? Café amarelo, quente e com jeito de estragado. Não, o café deve continuar preto. E se fosse vermelho? Tinto como o vinho e servido em taças? O relógio chama, clama por atitude.
Gavetas abertas, meias de lado. O que vestir? Jeans? Dúvidas e cores. O relógio chama, gavetas fechadas, meias vestidas e um par de tênis em movimento...
De um lado ao outro, como ir? Ônibus, carro, bicicleta ou andando? Caminhando e pensando e seguindo a questão: “Se somos todos iguais, braços dados ou não”, porque isso, porque aquilo e aquilo outro?
No trabalho, tenha dó! As férias ainda demoram? Desço a serra? Vejo as nuvens? Porque a neve é branca? Porque Minas não tem mar? “Que país é esse?” Que dia é hoje? Para que tanto imposto? Porque os árbitros erram tanto? Como se pode perder dois pênaltis num jogo só? O campeão vai ser o mesmo de sempre? Porque que a vida é assim?
Numa “happy hour” nem tão “happy”, chope claro ou escuro? Bolinhos de bacalhau ou aipim? Dúvidas e sabores. Sena é nome de um rio? Em Paris? Cena é coisa de teatro e se o Senna não morresse? Quem foi o melhor? Quem será o próximo? E o meu próximo, quem será? E o futuro?
De volta para casa, pensando, divagando, se arrastando, de cansaço? E amanhã, será que chove?
Faça-se o luar esplendoroso, chova canivetes ou tempestades imateriais, toda noite, muito antes dos olhos fechar, um assombro lhe passa na alma, mais um dia, um natal, um carnaval, um ano, um suspiro, tudo passa...

Escritos de Natal



Especial Capa

Solitários em Londres, o medo da “concorrência”, tradições chatas e o avesso do bom velhinho são temas de saborosos textos natalinos deixados em nossa árvore por quatro dos melhores autores brasileiros

Por: J. Oswaldo Cardoso

Talvez boa parte da geração que se tornou jovem nesta primeira década do século XXI não tenha ouvido falar em Fernando Sabino. Mineiro, Sabino é o “culpado” por centenas dos mais apaixonantes textos da língua portuguesa. Um mestre do gênero Crônica. Nesta edição de O Leitor Pinhalense – reforçando nosso propósito de resgatar a boa literatura e incentivar o hábito da leitura –, minha viagem pelas linhas que as palavras formam será sobre o Natal que se avizinha e de como autores do porte de Fernando Sabino, Mário Prata, Ignácio de Loyola Brandão e Carlos Drummond de Andrade deixaram impressas suas idéias e sentimentos acerca da mais importante data do calendário cristão ocidental: o Natal.
Começo por Sabino, o único entre os selecionados que nos deixou o registro de um Natal distante da realidade brasileira, aquele experimentado por pessoas solitárias na capital da Inglaterra, Londres.

A crônica a seguir tem o título “Mais um Natal”(1) e foi extraída de "Livro Aberto", da Editora Record, publicado em 2001, à página 304.
“Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.
Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.
Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.
— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.
O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu uma arrumação na casa.
Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.
— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?
Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora. Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote¬, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.”
A solidariedade e glorificação de Deus através da celebração do nascimento do Menino Jesus estão nesse “recorte” dos costumes da sociedade londrina reportados no final da crônica de Fernando Sabino:
“Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado: "Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite."

Dois em um – Muitas vezes, durante nossa formação até a fase adulta, as interrogações acerca do desconhecido, do diferente, povoam nossas mentes e corações por muitos anos. O escritor Ignácio de Loyola Brandão, na crônica “Ser Dois no Natal”(2), nos traz sua própria experiência dualística, ante o preconceito e discriminação infundados de adultos defensores de suas convicções religiosas pessoais.
“Minha mãe sempre dizia:
- Nem pensem em passar diante da igreja protestante.
- Por quê?
- Não acreditam no Menino Jesus. Natal para eles é o Papai e a árvore de Natal. Não são coisas santas. Natal é presépio e Menino Jesus. O resto não é Natal.
Mas a curiosidade em torno da igreja protestante era grande. Ficava na rua Quatro, em Araraquara. Sempre que passava diante dela, aos domingos, havia muitos cantos, todos alegres, enquanto na igreja católica os cânticos eram sérios, quase fúnebres. Eu morria de curiosidade de entrar na igreja inimiga (porque para minha mãe, os protestantes eram inimigos. Havia ainda a terrível ameaça: se entrar lá, vai para o inferno ao morrer. Se entrar lá será pecado mortal, não haverá salvação).” (...)
Qual época mais apropriada para desfazer os erros dos adultos que não o Natal? Loyola também se sentiu envolvido pelo clima natalino, que o encorajou a descobrir as verdades e desfazer os mitos. No trecho a seguir, ele desafia os conselhos maternos.
(...) “Só sei que todos os dias comecei a passar diante da igreja protestante. O Natal se aproximava e uma tarde fiquei olhando pela janela a arrumação da árvore. A árvore proibida. E era linda a deles, com fios de luzes, bolas brilhantes e coloridas, presentinhos pendurados. Eu daria tudo para ter uma árvore daquelas em casa. Na mesma hora, começaram a ensaiar os cantos de Natal e fiquei tão louco que entrei direto na igreja. Esperava sentir um baque, como um raio caindo em minha cabeça. Não aconteceu nada.” (...)
Esperando o aparecimento de alguma das ameaças lançadas pela mãe, Loyola experimenta outras experiências.
(...) “Não senti o pecado me corroer. Não senti o calor do inferno. Aquela gente toda me parecia boa e estavam todos alegres. Só não entendia uma coisa. O Natal é o nascimento de Jesus. Mas por que os protestantes comemoravam se não acreditavam em Jesus? Foi o primeiro grande mistério de minha vida. Um nó na cabeça, uma confusão.” (...)
Desfazendo cada um dos mitos difundidos pela mãe e amigas, o escritor vai experimentando (e checando os resultados) o delicioso sabor da verdade e chega a uma conclusão bastante cristâ: somos todos irmãos e o Deus dos católicos, protestantes, budistas, muçulmanos, judeus etc é único, vale para todos, o que desestrutura o sentido ou a lógica da “guerra” entre as religiões. Loyola, ao invés de rejeitar outra religião que não fosse o catolicismo, se desdobra, confraterniza e, antes de temer o “inferno”, enriquece sua alma.
(...)Queria outro pedaço só para ver a menina protestante. Tão linda. Ah, meu deus, por que eu não podia gostar de uma menina assim? De repente, tomei uma decisão. Eu queria ser protestante! Seria possível? Ser protestante e católico? Na minha casa, católico. Na rua, protestante. Eu seria dois. Olha aí que coisa mais legal! Ser dois em lugar de um! Desde aquele dia me dividi e me senti muito feliz. E a cada Natal até hoje, passados tantos anos, eu me sinto assim dividido e já namorei moças católicas e moças protestantes e fuifeliz com elas.”

Chatices do Natal – Em uma ótica totalmente diversa de Loyola, o escritor Mário Prata, na crônica “Jingle Bell pra vocês”(3) , – escrita em 1994 – fundamenta suas razões para não gostar do Natal e do que acontece nesse período. Extraída do livro 100 Crônicas, da editora Cartaz Editorial, São Paulo, edição de 1997, à página 148.
“Não gosto do Natal. Não chego a odiar mas não gosto. Nunca gostei. Desde pequeno, no interior. Papai Noel sempre me assustou. Gostava de preparar a árvore com dias de antecedência, apesar de não concordar em colocar algodão para "simbolizar" a neve. Gostava de imaginar os presentes.” (...)
A aversão do autor pelo período natalino não para aqui. Prata descreve como é irritante ir a noite em barzinhos e restaurantes para tomar um chopp e ouvir as gritarias das mesas ao lado, “confraternizando”. Os inevitáveis “Amigos Secretos (ou Ocultos)” das empresas, que invariavelmente nos fazem dar presentes para quem não temos afinidade alguma.
As propagandas de final de ano igualmente não escapam ao crivo das letras afiadas de Mário Prata. “E as propagandas de Natal? Existe coisa mais horrível que este bando de gordos com brancas barbas, puxados por veadinhos?” Da televisão para a vida real, a artilharia prateana não cessa. Os “Papai Noéis” que vão de casa em casa são postos na mesma lista dos absurdos natalinos. “(...) os pais obrigam as criancinhas a dar beijo naquele sujeito imenso, barba descolada, sapatão de militar, já meio bêbado (...) As criancinhas esperneiam, não dormem semanas seguidas, sonhando com aquele monstro que o pai fez beijar.” (...)
Nem mesmo a ceia de Natal foi poupada. “Com o passar dos anos, a família vai crescendo e de repente já são quatro gerações que estão ali, de olho no peru. Umas 50 pessoas. E ali dá de tudo. Cunhados que não se falam, (...) aquele casal que está separado mas que, no Natal, baixa o "espírito" e eles comparecem juntos. (...) Tudo é permitido. Afinal, é Natal. Nasceu quem mesmo? Jesus, não foi? E, por isso, à meia-noite, todos dão as mãos e rezam (des)unidos.”
Justificando o título da crônica, Prata dispara. “E, para terminar: existe música mais chata que Jingle Bell? Já o Reveillon, é o maior barato. É quando tomamos o porre para tirar e esquecer a ressaca do Natal. Mas não adianta. No ano que vem, tem outro Natal.”

Na poética do também mineiro Carlos Drummond de Andrade (leia no boxe desta página), os presentes de Natal não chegam exatamente pelas mãos do bom velhinho de barbas brancas e roupas vermelhas. Com refinado bom humor e um sutil jogo de contrastes, o poema Papai Noel às Avessas (4), publicado em 1930, no primeiro livro do autor, está repleto da mágica e entorpecente poesia drummondniana, encontrada até mesmo nesta antítese de Papai Noel.
Feliz Natal.

Papai Noel às Avessas
Carlos Drummond de Andrade

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Este poema foi publicado no livro Alguma Poesia, Editora Pindorama, em1930, primeiro livro do autor. Texto extraído do livro Nova Reunião, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1983, página 24.

1 – http://www.releituras.com/fsabino_maisumnatal.asp
2 – www. opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/845585.html
3 – www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/jingle_bell_para_voces.htm
4 – www. releituras.com/drummond_papainoel.asp

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O banqueiro, o vaqueiro e o governador

A Pauliceia – Parte 2
Confirmando sua condição de ponto convergente de toda sociedade de Espírito Santo do Pinhal, A Pauliceia assiste a um bizarro encontro
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Por: J. Oswaldo Cardoso
Desde sua fundação, em 1893, o nosso querido Bar e Restaurante Pauliceia tomou para si as atenções da socieadede pinhalense. Logo nos primeiros anos de vida, funcionava numa das portas frontais da casa uma agência do Banco Francês e Italiano para a América do Sul. Mas a matriz do banco não queria que seu proprietário e fundador, Pedro Monici, tivesse um estabelecimento comercial. Foi assim que o conhecido Zeca Avelino (José Avelino da Silva) se tornou proprietário do A Paulicéia.
A fama de principal ponto de encontro da cidade, de reduto das pessoas bem informadas e de negociantes de toda natureza se deve em boa medida ao espírito que Zeca Avelino imprimiu ao bar. Nas décadas seguintes, para lá seriam atraídas personagens que entraram para a História da pacata Espírito Santo do Pinhal.
Beber café, cachaça, dar uma pitada no fumo de corda ou no cigarro, prosear sobre todos os assuntos e em especial sobra a vida alheia, observar as mulheres bonitas (e as feias também, posto que se tratava de reduto masculino) era o cotidiano daquele templo da sociedade pinhalense. Não raro as situações inusitadas tomavam de assalto o estabelecimento então dirigido por Avelino.
Por duas vezes o governador do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros, e seus acessores estiveram na outrora gloriosa Pinhal, conhecida por seu especial café e pelos barões que fixaram residência no centro da cidade.
A primeira em 1939 e a outra em 1949. A data da foto que ilustra este texto é incerta. Talvez 1949.
Em qualquer um dos dois anos em que o fato tenha acontecido, a autoridade político-administrativa mais alta do estado paulista não poderia passar pelo município sem que ao menos desse uma paradinha para um cafezinho naquele que era também um espaço onde se fazia muita política.
E lá foi Adhemar, com aquelas calças acima da cintura, barriga proeminente e um ar grave e austero, que impunha autoridade sem falar uma única palavra, alternado com a expressão de “não sei o que estou fazendo aqui”. Depois de beber o genuíno café de Espírito Santo do Pinhal, feito minutos antes especialmente para deleite do governador, saiu da Paulicéia e foi ter com o povo.
Já no meio da rua que separa o bar da Praça da Independência, Adhemar de Barros se depara com uma pequena multidão de pessoas do povo. Naquele aglomerado humano, se destaca a figura de Walter Mozzaquatro, com uma corda na mão. No final daquela corda, uma pacata vaca leiteira, já sentada com o traseiro no paralelepípedo do calçamento.
Ante o inusitado da cena e certamente não querendo hostilizar um potencial eleitor, Adhemar preferiu encarar o fato como uma normalidade. Sua reação foi tão amistosa, tão simpática para todos que presenciavam sua passagem por Pinhal, que o governador concordou até mesmo que fosse tirada uma foto, única forma de deixar registrado para sempre esse momento de interação política entre a fauna pública e a particular.