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domingo, 17 de janeiro de 2010

Escritos de Natal



Especial Capa

Solitários em Londres, o medo da “concorrência”, tradições chatas e o avesso do bom velhinho são temas de saborosos textos natalinos deixados em nossa árvore por quatro dos melhores autores brasileiros

Por: J. Oswaldo Cardoso

Talvez boa parte da geração que se tornou jovem nesta primeira década do século XXI não tenha ouvido falar em Fernando Sabino. Mineiro, Sabino é o “culpado” por centenas dos mais apaixonantes textos da língua portuguesa. Um mestre do gênero Crônica. Nesta edição de O Leitor Pinhalense – reforçando nosso propósito de resgatar a boa literatura e incentivar o hábito da leitura –, minha viagem pelas linhas que as palavras formam será sobre o Natal que se avizinha e de como autores do porte de Fernando Sabino, Mário Prata, Ignácio de Loyola Brandão e Carlos Drummond de Andrade deixaram impressas suas idéias e sentimentos acerca da mais importante data do calendário cristão ocidental: o Natal.
Começo por Sabino, o único entre os selecionados que nos deixou o registro de um Natal distante da realidade brasileira, aquele experimentado por pessoas solitárias na capital da Inglaterra, Londres.

A crônica a seguir tem o título “Mais um Natal”(1) e foi extraída de "Livro Aberto", da Editora Record, publicado em 2001, à página 304.
“Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.
Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.
Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.
— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.
O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu uma arrumação na casa.
Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.
— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?
Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora. Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote¬, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.”
A solidariedade e glorificação de Deus através da celebração do nascimento do Menino Jesus estão nesse “recorte” dos costumes da sociedade londrina reportados no final da crônica de Fernando Sabino:
“Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado: "Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite."

Dois em um – Muitas vezes, durante nossa formação até a fase adulta, as interrogações acerca do desconhecido, do diferente, povoam nossas mentes e corações por muitos anos. O escritor Ignácio de Loyola Brandão, na crônica “Ser Dois no Natal”(2), nos traz sua própria experiência dualística, ante o preconceito e discriminação infundados de adultos defensores de suas convicções religiosas pessoais.
“Minha mãe sempre dizia:
- Nem pensem em passar diante da igreja protestante.
- Por quê?
- Não acreditam no Menino Jesus. Natal para eles é o Papai e a árvore de Natal. Não são coisas santas. Natal é presépio e Menino Jesus. O resto não é Natal.
Mas a curiosidade em torno da igreja protestante era grande. Ficava na rua Quatro, em Araraquara. Sempre que passava diante dela, aos domingos, havia muitos cantos, todos alegres, enquanto na igreja católica os cânticos eram sérios, quase fúnebres. Eu morria de curiosidade de entrar na igreja inimiga (porque para minha mãe, os protestantes eram inimigos. Havia ainda a terrível ameaça: se entrar lá, vai para o inferno ao morrer. Se entrar lá será pecado mortal, não haverá salvação).” (...)
Qual época mais apropriada para desfazer os erros dos adultos que não o Natal? Loyola também se sentiu envolvido pelo clima natalino, que o encorajou a descobrir as verdades e desfazer os mitos. No trecho a seguir, ele desafia os conselhos maternos.
(...) “Só sei que todos os dias comecei a passar diante da igreja protestante. O Natal se aproximava e uma tarde fiquei olhando pela janela a arrumação da árvore. A árvore proibida. E era linda a deles, com fios de luzes, bolas brilhantes e coloridas, presentinhos pendurados. Eu daria tudo para ter uma árvore daquelas em casa. Na mesma hora, começaram a ensaiar os cantos de Natal e fiquei tão louco que entrei direto na igreja. Esperava sentir um baque, como um raio caindo em minha cabeça. Não aconteceu nada.” (...)
Esperando o aparecimento de alguma das ameaças lançadas pela mãe, Loyola experimenta outras experiências.
(...) “Não senti o pecado me corroer. Não senti o calor do inferno. Aquela gente toda me parecia boa e estavam todos alegres. Só não entendia uma coisa. O Natal é o nascimento de Jesus. Mas por que os protestantes comemoravam se não acreditavam em Jesus? Foi o primeiro grande mistério de minha vida. Um nó na cabeça, uma confusão.” (...)
Desfazendo cada um dos mitos difundidos pela mãe e amigas, o escritor vai experimentando (e checando os resultados) o delicioso sabor da verdade e chega a uma conclusão bastante cristâ: somos todos irmãos e o Deus dos católicos, protestantes, budistas, muçulmanos, judeus etc é único, vale para todos, o que desestrutura o sentido ou a lógica da “guerra” entre as religiões. Loyola, ao invés de rejeitar outra religião que não fosse o catolicismo, se desdobra, confraterniza e, antes de temer o “inferno”, enriquece sua alma.
(...)Queria outro pedaço só para ver a menina protestante. Tão linda. Ah, meu deus, por que eu não podia gostar de uma menina assim? De repente, tomei uma decisão. Eu queria ser protestante! Seria possível? Ser protestante e católico? Na minha casa, católico. Na rua, protestante. Eu seria dois. Olha aí que coisa mais legal! Ser dois em lugar de um! Desde aquele dia me dividi e me senti muito feliz. E a cada Natal até hoje, passados tantos anos, eu me sinto assim dividido e já namorei moças católicas e moças protestantes e fuifeliz com elas.”

Chatices do Natal – Em uma ótica totalmente diversa de Loyola, o escritor Mário Prata, na crônica “Jingle Bell pra vocês”(3) , – escrita em 1994 – fundamenta suas razões para não gostar do Natal e do que acontece nesse período. Extraída do livro 100 Crônicas, da editora Cartaz Editorial, São Paulo, edição de 1997, à página 148.
“Não gosto do Natal. Não chego a odiar mas não gosto. Nunca gostei. Desde pequeno, no interior. Papai Noel sempre me assustou. Gostava de preparar a árvore com dias de antecedência, apesar de não concordar em colocar algodão para "simbolizar" a neve. Gostava de imaginar os presentes.” (...)
A aversão do autor pelo período natalino não para aqui. Prata descreve como é irritante ir a noite em barzinhos e restaurantes para tomar um chopp e ouvir as gritarias das mesas ao lado, “confraternizando”. Os inevitáveis “Amigos Secretos (ou Ocultos)” das empresas, que invariavelmente nos fazem dar presentes para quem não temos afinidade alguma.
As propagandas de final de ano igualmente não escapam ao crivo das letras afiadas de Mário Prata. “E as propagandas de Natal? Existe coisa mais horrível que este bando de gordos com brancas barbas, puxados por veadinhos?” Da televisão para a vida real, a artilharia prateana não cessa. Os “Papai Noéis” que vão de casa em casa são postos na mesma lista dos absurdos natalinos. “(...) os pais obrigam as criancinhas a dar beijo naquele sujeito imenso, barba descolada, sapatão de militar, já meio bêbado (...) As criancinhas esperneiam, não dormem semanas seguidas, sonhando com aquele monstro que o pai fez beijar.” (...)
Nem mesmo a ceia de Natal foi poupada. “Com o passar dos anos, a família vai crescendo e de repente já são quatro gerações que estão ali, de olho no peru. Umas 50 pessoas. E ali dá de tudo. Cunhados que não se falam, (...) aquele casal que está separado mas que, no Natal, baixa o "espírito" e eles comparecem juntos. (...) Tudo é permitido. Afinal, é Natal. Nasceu quem mesmo? Jesus, não foi? E, por isso, à meia-noite, todos dão as mãos e rezam (des)unidos.”
Justificando o título da crônica, Prata dispara. “E, para terminar: existe música mais chata que Jingle Bell? Já o Reveillon, é o maior barato. É quando tomamos o porre para tirar e esquecer a ressaca do Natal. Mas não adianta. No ano que vem, tem outro Natal.”

Na poética do também mineiro Carlos Drummond de Andrade (leia no boxe desta página), os presentes de Natal não chegam exatamente pelas mãos do bom velhinho de barbas brancas e roupas vermelhas. Com refinado bom humor e um sutil jogo de contrastes, o poema Papai Noel às Avessas (4), publicado em 1930, no primeiro livro do autor, está repleto da mágica e entorpecente poesia drummondniana, encontrada até mesmo nesta antítese de Papai Noel.
Feliz Natal.

Papai Noel às Avessas
Carlos Drummond de Andrade

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Este poema foi publicado no livro Alguma Poesia, Editora Pindorama, em1930, primeiro livro do autor. Texto extraído do livro Nova Reunião, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1983, página 24.

1 – http://www.releituras.com/fsabino_maisumnatal.asp
2 – www. opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/845585.html
3 – www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/jingle_bell_para_voces.htm
4 – www. releituras.com/drummond_papainoel.asp

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